VARIAÇÕES  SOBRE  LEGALIDADE

MIGUEL REALE

 

         A súbita deposição do trêfego presidente venezuelano Hugo Chávez por forças militares, seguida de seu imediato e inesperado retorno ao poder, como exigência do clamor público, constitui um episódio que deve ficar na História do Direito como uma lição magnífica de ruptura da legalidade.

         A obediência à lei é o supedâneo primordial da democracia, a qual repousa sobre dois pilares expressamente proclamados pelo nunca assaz louvado Art. 5º da Constituição de 1988: o de que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, e o de que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.

         Isto quer dizer que, no regime democrático, só obriga um fim consagrado por lei, desde que o meio empregado para estabelecê-la corresponda a processo também previsto em lei. É a luz desses dois princípios conjugados que podemos compreender o que seja Estado Democrático de Direito, cuja legitimidade se confunde com a das normas legais instituídas objetivamente em função dos valores éticos fundamentais, sem os quais a democracia não subsiste.

         A legalidade, por conseguinte, não se reduz a mero comando expresso pelos “donos do poder”, o que não foi obedecido pelo Congresso venezuelano ao conferir, servilmente, ao presidente Chávez “poderes legislativos discricionários” constantes da chamada Lei Habilitante, fonte primeira de todos os abusos por ele  praticados e que importaram na sua desastrada e transitória destituição.

         Estamos, por conseguinte, perante três ordens de fatos interligados que explicam o que ocorreu na Venezuela: primeiro, uma incrível abdicação parlamentar a favor de um governante armado de poderes ilimitados de que iria grotescamente abusar; ao depois, a reação cívico-militar contra esse lastimável estado de coisas, seguida pela nomeação irregular de um “presidente provisório”, cuja decisão preliminar foi, inexplicavelmente, extinguir o Congresso e o Supremo Tribunal de Justiça, sem incontinenti convocar o eleitorado para novas eleições presidenciais.

         Houve, pois, uma série de atos ilegais, cujo desfecho final foi a volta de Chávez, já agora, ao que parece, como “presidente arrependido”, disposto a substituir sua “pseudo aventura bolivariana” por um governo democrático, respeitadas e ouvidas as vozes políticas divergentes, como é próprio da democracia.

         Dir-se-á que a história está cheia de exemplos de “rupturas da legalidade”, quando se chega ao ponto extremo de desrespeito à ordem jurídica constituída, impondo-se a opção por uma nova fase constitucional. Mas, embora tal fato seja inegável, tudo deve ser feito para salvaguardar a linha de continuidade legal inerente ao Estado Democrático de Direito.

         Lembremos o que ocorreu no Brasil em 1964, quando se tornou manifesto o propósito do presidente João Goulart de instaurar no País um regime  comunista ou filo-comunista, justificando, desse modo, o processo revolucionário, ou, se quiserem, contra-revolucionário de seu afastamento.

         A meu ver, era legítimo alijar o chefe de governo de então, e, não me arrependo de, como Secretário de Justiça do Estado de São Paulo, ter agido nesse sentido. Confesso, todavia, que a implantação de um regime militar, que iria durar nada menos de vinte anos, estava bem longe de minhas intenções. Até o último momento, pensei que se iria convocar, em substituição ao presidente deposto, o presidente da Câmara dos Deputados ou do Supremo Tribunal Federal, sendo justo lembrar que era esse também o ponto de vista do governador Adhemar de Barros, assim como de Juscelino Kubitscheck, Carlos Lacerda e demais líderes que atuavam no cenário político do País.

         Infelizmente, optou-se por um “sistema militar” mediante a promulgação de um Ato Institucional que conferia ao Chefe da Nação poderes ditatoriais, muito embora se declarasse ainda em vigor a Constituição de 1946. O único imperativo constitucional que até certo ponto se preservou foi o relativo ao Congresso Nacional, mantido a duras penas, lanhado e suspenso de suas funções, mas conservado como uma “estaca da democracia”, a qual iria servir de base ao retorno da legalidade.

         Mas não é preciso volver ao passado para constatar a crise de legalidade por que passa o mundo contemporâneo, a começar pelo Brasil, onde o Movimento dos Sem Terra, dia a dia, comprova seu espírito antidemocrático e subversivo. Não o faz só por palavras, em desafios afrontosos de seus chefetes, mas através de constantes invasões de propriedades produtivas ou não. Uma coisa que não perdôo ao governo tão capaz do presidente Fernando Henrique Cardoso é a inexplicável tolerância que tem tido quanto aos abusos do MST, mesmo quando este proclamou abertamente seus propósitos de derrubada do regime político vigente no País. Confesso que nada me revoltou tanto como o contínuo “diálogo fraterno” mantido por Ministros de Estado com os atrevidos líderes de um movimento que é a expressão viva da ilegalidade.

         No plano externo, a violação dos imperativos legais mais impressionante é a perpetrada acintosamente por Israel, invadindo a Palestina para nela destruir casas residenciais, hospitais e igrejas, com centenas de vítimas civis, sendo empregados alguns dos processos utilizados por Hitler contra os judeus na Alemanha.

         O que impressiona na crise do Oriente Médio não é apenas a prepotência de Israel, mas também a falta de decisão da comunidade internacional no sentido de obrigá-lo a respeitar a implantação do Estado Palestino, com a retirada imediata de suas tropas de ocupação a pretexto de luta contra o terrorismo. Por muito menos houve a intervenção da ONU na Iugoslavia, com os Estados Unidos da América à frente, a única nação em condições de pôr fim à operação militar determinada pelo truculento governo israelense.

         Como se vê, se este primeiro século de um novo milênio parece ter superado definitivamente a era das guerras tradicionais, não faltam exemplos de graves atentados à legalidade que é o cerne do Estado de Direito.

                                              

                                                                                     27/04/2002